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domingo, 16 de dezembro de 2012

Peregrinações Amazônicas


Peregrinações Amazônicas
Silas Corrêa Leite
Historiografia Literária, Mitologia e Cultura no prazer de ler o fabuloso pensador Fábio Lucas
Cada objeto contemplado, cada grande nome
murmurado é o ponto de partida de um sonho
e de um verso, é um movimento linguístico criador...
(G. BACHELARD)
Quando leio um bom livro, surpreso e encantado, passa-se um filme na minha cabeça e fico embalado, quase levito. Mas, quando se lê um livro de ensaio de alto nível cultural como Peregrinações Amazônicas - História, Mitologia, Literatura (Ed. LetraSelvagem, 2012, Coleção À Margem da Historia), de Fábio Lucas, fico deveras embevecido, pensando sistematicamente no livro estupendo, na cabeça criacional e portentosa do autor, no volume líterocultural da obra como um todo, e tenho que parar uns dias para ir assimilando o conteúdo todo, me embebedando do acervo iluminador, entrando no caldo de sabença em que me mergulhei, agradecendo a Deus por ter me dado a oportunidade de ler essa obra prima, um dos melhores livros que li de literatura brasileira de todos os tempos. Saí da leitura como se tivesse saído de uma universidade, de um curso de pós, especialização, extensão, tal o conhecimento adquirido, tanto o historiado, quando me dei por satisfeito por estar ali, com aquela joia em mãos, nunca podendo imaginar que um dia leria um grande livro assim, de tamanho valor na sua temática abrangente. Fui, de cara, dobrando página a página, e marcando acontecências, citações, parágrafos magníficos, e que quem me viu lendo me sentiu em transe, pior, quando acabei enluado e bem sortido de conhecenças, o livro todo parecia uma sanfona de centenas de dobras marcadoras aqui e ali, várias marcas na mesma página, que se eu fosse pinçar todas as páginas selecionadas, o suprassumo de tudo o que li, seria quase o livro todo marcado de leção. Bravo!
Sim, sou de ler (comer) pelas beiradas, depois tomar pé do estilo, narrativa, técnicas, ler a obra que se sustém de qualidade, as entrelinhas, o tácito aqui e ali e o desdizer, e sou também de ler vários livros ao mesmo tempo, porque, enquanto me decanto de um, tomo um outro pela mão, quando me canso do estilo e narrativo, garro outro, e outro, depois volto ao que mais gostei, quando se vê, li dois ou três livros ao mesmo tempo, e raramente um se perdeu pelo caminho. Mas, confesso, em Peregrinações Amazônicas, de literaturas, pesquisas, sentições, do Critico, Escritor e Ensaista Fábio Lucas, tive que abdicar desse costume antigo meu, pois fui redondamente abduzido, até porque, falando sério, Peregrinações Amazônicas não é um livro, são vários livros, várias obras ao mesmo tempo, vários livros num só livro. Que loucura santa. Aleluia, ou deveria dizer que belezura? Um achado de livraço. Dez livros em um? Um livro-faculdade. O livro de uma vida. Ecos brilhantes de tantas vidas brasilis. Tudo ali, no livro, e você de ensimesmado a tocado, de seduzido a satisfeito e pleno no seu sentir, para citar Clarice Lispector.
Aliás, desde que precoce me vi sonhando em ser um poeta um dia, e lá me era quase meio que já metido a escrevinhanças em pedaços de compensados, folhas de papel de pão e caixas de papelão de chapéus de feltro, que me dei loucamente a ler de tudo, compreender de bula de remédio e dizeres de embalagens de Quiboa a caixas de Mate-Leão e embalagens de Cibalena, de placas de beiras de estrada a gibis rueiros, de revistas como Sétimo Céu a Seleções, de palavras cruzadas a charadas, ou mesmo do próprio castigo caseiro de ser obrigado a ler na marra Fatos e Fotos, a Bíblia, Dicionários, Enciclopédias e jornalões (as brigas de Jango, de Goulart e Lacerda, Cadeia da Legalidade, essas coisas historiais datadas), e, ainda assim, e por isso mesmo, nesse meu início de loucura de querer saber, sentir, pensar, escrever, que de cara como se um magiclick, fui me cativando a ler comentários críticos, resenhas críticas, ensaios, reportagens, entrevistas autorais a respeito, inclusive em publicações nacionais, e mesmo de livros vertidos para o português de autores estrangeiros, e até mesmo obras de teses, ensaios e publicações variadas a respeito, para tentar aprender e apreender alguma coisa do processo de criar, inventar, sentir e pensar o próprio sentir, nas loucuras do entorno, de sacar a sensibilidade da arte-criação autoral, tentando captar a aura, a pena e a alma do escritor naquilo tudo que ele quis mesmo dizer, ou não, se se desgarrou, iluminou diverso ou coisa assim, ou talhou parecença, será o impossível? Pois quando acabei de ler Peregrinações Amazônicas, fiquei pasmo. Para reler, pontuar, apreender, captar, conhecer, indicar, e, claro, jamais emprestar para quem quer que seja. Um rio caudaloso de conhecimento. Joia rara. A unidade inseparável do todo, a totalidade da hileia verde e da água amazônica uma vertigem caudalosa até no banho lítero-cultural. Já pensou?
Todas essas memoriais catanças narrativas preliminares, para tentar quebrar o impacto psicológico de primeiro momento, e tentar de algum modo escrever de alguma maneira, alguma coisa sobre o livro Peregrinações Amazônicas. Não, não é fácil. Teria topete para tanto? Irmão, é preciso coragem, diria a canção. Por isso, nem considero aqui, isso que pontilho rapidamente e inseguro, uma resenha que seja, na verdade coloquei mais humildemente como apontamentos para um rascunho de comentários e afins. Arrisco? Tomo tento. Cismo e toco o barco. Não é fácil tocar o inominável do que a grande obra é, do que o livro representa, já nascido e belamente editado como um clássico na área. Uma viagem pela Amazônia; alma amazônica a dentro, uma Amazônia eufonizada, malha fluvial e malha literária, o pensador, o crítico, o visionário, o ledor, o escritor Fábio Lucas, tudo na derrama de uma obra social, etnias e riscos, disparates e conjeturas, rios e sabenças, crenças e situações, estilos e narrativas, veios e pertencimentos. Uma lição de livro, pode-se dizer. Uma lição-livro.
Um livro como o próprio Rio Amazonas e a região como um todo. Um livro com nascedouros, vertentes, enluos, vazadouros, achadouros, afluentes e afins, cenário e grandeza, cisterna e natureza exuberante, acima sobre todas as coisas uma revisão de leitura e pensagens sobre a situação, a região, águas profundas de pesquisas, releituras, entendimentos, interpretações datadas e conhecimentos que embasam a arte nele vertida, na geografia literal de um mundo verdejante posto em livro. Com este livro, ensaio documental, historial, um marco, Fábio Lucas assume o primeiro lugar da Crítica brasileira, o melhor de todos. Como o editor diz na última capa: Fábio Lucas  estabelece um roteiro seguro e indispensável para quem quiser tomar posse do conhecimento existencial e filosófico dessa outra Amazônia que o Brasil e o mundo desconhecem; uma Amazônia pensante, sensível, inteligente...”A paisagem líterocultural da região Amazônica, expandida para uma perspectiva de um pensador de renome, de um ensaísta de quilate, de um pensador e escritor que escreveu a obra-prima de sua vida já antes consagrado, aqui para enriquecer a bibliografia brasileira e dar um novo foco, uma nova paisagem da região como um todo. O livro abraça todo esse universo. São novas formas de registros que englobam todo um trabalho de anos, de coleções, de pertences, relíquias pan-regionais e catálogos biobibliográficos de epistemologia, o que consagra o livro.  Escrever é assedimentar respostas?
Partindo de leituras de obras anteriormente publicadas sobre a temática, de Ferreira de Castro a Aníbal Beça, entre outros, mais pesquisas de campo, já no primeiro capítulo o autor entra na safra que enfoca olhares cobiçosos, navegação, borracha, pesca, madeira, biodiversidade, gado, soja, com o subtítulo Capítulos da Brasilidade e a Cobiça pela Amazônia, e então navega narrativas profundas sob seu prisma, da dinâmica constitutiva do local, à identidade com o próprio pluralismo cultural da região, índios, negros, mestiços, mamelucos, na hileia verde, dito pulmão do mundo, conquistas e derramas, perdas e trilhas abertas, o coração brasileiro no seu polo verde saltando vidas, costumes, brejeirices, coisas típicas e particularidades da região com todas as suas peculiares, características que ainda hoje alumbram o mundo inteiro. Logo diz de Eduardo Nogueira Angelim, de Guimarães Rosa, depois de aspectos contemporâneos como a latente biodiversidade, documentos pertinentes, coletas, vendas, patenteamentos, observado o doutrinamento ao próprio ecossistema como um enorme polvo verde abrindo abraços, agregando, urdindo, criando feições... São precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência, disse Milan Kundera.
Logo o autor entra nas façanhas do patriota Euclides da Cunha, escritor redentor da melhor brasilidade chã, e também resgatador e pensador da nacionalidade a partir da fase amazônica. Traços bibliográfico do cientista social em obra multiforme, antropólogo emergente de ocasião e percurso, num crochê de criações paradigmáticas, beirando a sociologia, estudando a civilização e seus costumes então enraizados em terras náuticas, psicologia, ciência e arte no mesmo vareio de ebulição; desdobramentos de fatos e interpretações de fatos, nomadismo, êxodo, revoltas, aborígenes e suas práticas campesinas primitivas, assentamentos, núcleos existenciais e o mundo agrário em carne viva. Sim, Euclides da Cunha foi magnífico para o seu tempo, e, citando o bíblico sábio Salomão, se o tempo é o melhor juiz,  Euclides então ainda é o suporte testemunhal de tempo, lugar e lonjuras do arco da velha, com sua geografia de espaçamentos étnico-sociais em sangrias desatadas para a época; o historial da região em conflito-crise em tantos campos desses brasis gerais, ali também em plagas de muito ouro e pouco pão, contrastes e confrontos no paraíso tropical, o pluvial e o fluvial, as sagas, as chagas sociais, os desterrados, os negredos, enfim, um paraíso perdido nos confins do mundo.
Teve Euclides da Cunha a incumbência de chefiar a Comissão Brasileira para, juntamente com a comissão peruana, definir as fronteiras do Alto do Rio Purus. Desempenhou o encargo, em missão atribuída pelo Ministro Rio Branco, das Relações Exteriores, com alta competência e determinação, o já famoso escritor deOs Sertões”(Pg. 86).
Depois, o escritor entra na safra da prosa - estudo rico - de Bendito Nunes, e, perto do coração selvagem da terra bruta, mais teologia e filosofia, diz de paixões e coisas assim humanas, manifestos, ensaios, registros, contundências e magnitudes, num corte que faz um circunstancial e oportuno balanço regional do ramo local da historiografia literária brasileira.“Teríamos, então, três Teologias: a neotestamentária do deus encarnado, a natural do Theos, ente supremo representado como a causa, e dos deuses, de substância narrativa mítica ou poética (Citado da obra, pg 33 no livro Crivo de Papel, Pg 104.)
Ah a maravilhosa manifestação sensível das ideias humanas...
O homem sujeito dessa universalidade (Kant) no querer que funda atos sobre a razão.
Depois, a obra evoca o exótico Marcio Souza (Galvez, Imperador do Acre, 1976), com seu jorro neural e inconsciente fortíssimo, nas diabruras literárias portentosas de seu ritmo alu-(la)cinante, no cipoal de um folhetinesco humanismo lacrimejante, histórias e estórias do high society entornado de prostitutas. Galvez, Imperador do Acre não se presta à oposição maniqueísta  entre literatura digestiva e texto hieróglifo. A enganadora transparência do enredo não deve dispensar o leitor de atingir camadas mais profundas de crítica ao ambiente amazonense e de sátira a obras que tentaram reproduzir aquele ambiente”(Pg. 112).
Depois ainda o escritor aborda traços da ficção de Lindanor Celina, dizendo do patrimonialismo latifundiário nas grotas da Amazônia, com suas condutas humanas sistematizadas e a própria interrelação homem-natureeza. Dela diz o autor, ao final de uma análise de seus pertences literários regionais afins: "O redondilhado da prosa de Lindanor Celina adiciona ao relato o poder da consciência verbal de sua região(...)"
No capitulo IV, aflora o tear da poesia da Amazônia. Perpassa por João de Jesus Paes Loureiro – o mundo submerso, o império da cobiça, o simbolismo inconsciente - mitos e territórios com/flagrados, estigmas existenciais e marca o  belo poetar:
Não somos contra nada.
Somos à margem de tudo...
Nossos sonhos, tropel, cavalos abatidos apodrecem ao relento.
E, no entanto,
Buscamos a possível solução.
(Escadaria do teatro da Paz. Primeiro degrau)
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Em seguida, o autor bebe do deleite derramado de Ferreira Gullar, entre os registros das crises de espírito à poesia engajada, com alguma claridade iluminista, operando mitos de origem, oficinando o artifício do neodadaismo, barulhando cheiros e cores e terras, a natureza-mãe (O ilícito sol / Da lepra acesa da pele. Poema O Inferno), tresmalhando uma coisa em outra, de bananas podres a encruzilhadas de origens. Depois o escritor Fábio Lucas cobre Nauro Machado e a sua poética e inerente pátria do exílio. A consciência criadora do poeta com seu passado na construção catártica como leitmotiv, com brumas e arcanos do inconsciente, a solidão como cerne, a morte como razão de canto. Por fim, navega para o granfinale do livro nos cantos amazônicos de Márcia Theófilo, pousa na poética de Benedicto Monteiro, onde funda remos e bate o martelo: está pronta a obra. Eis o homem, eis o livro. Eis um clássico, daquele que é hoje considerado o mais importante critico e conferencista da literatura brasileira, o que o livro Peregrinações Amazônicas”confirma, sustenta e consagra. Parafraseando Friedrich Nietzsche, a boa literatura não move montanhas, mas coloca montanhas de conhecimentos onde há ensejo de pesquisas, debates, procuras e informações com propósito de arte literal de primeira grandeza.
Depois que se lê um livro desses, você nunca mais é o mesmo. Mas sai inteirado do assunto temático, com riqueza de detalhes, amplo conhecimento importante de causas nos temas abordados, e ainda com gostoso sabor de inigualável desfrute. Um bom livro abre cabeças. Saí do livro muito mais rico do que entrei nele. Fábio Lucas agora e por isso mesmo, ele próprio também um mito da literatura brasileira.
A palavra é fio de ouro do pensamento, diria Sócrates.
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*Silas Corrêa Leite é autor, entre outros, de Desvairados Inutensílios(poemas)

Postado Por 
Vera Lucia Costalonga Lopes 
Graduada em Letras /Português / Inglês pela UNIoeste – de Presidente Prudente /SP 
Pedagogia/supervisão / administração / coordenação pela Fafiprev  de Venceslau-SP
 Especialista em Docência do Ensino Superior - Pós-Graduada Pela Unipan de Cascavel-PR  


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